Amália: Uma voz imortal
Amália, a voz universal que simboliza o fado mas transcende os limites da canção nacional, faleceu há dez anos. Um pretexto mais para regressar a uma artista cuja obra se confunde com a própria identidade de Portugal.
Mais consensual agora do que no auge da sua carreira, Amália Rodrigues, que morreu com 79 anos, até pode ser hoje incensada pelos mesmos que, no passado, a cobriram com acusações várias e até antagónicas - de aliada do regime salazarista a defensora dos ideais comunistas-, mas a importância do seu legado resiste sem dificuldade às súbitas mudanças de opinião.
Muito antes de Eusébio ter transportado o nome de Portugal para lá das suas fronteiras, já a fadista percorria países e continentes com um entusiasmo quase juvenil, deleitando plateias de milhares com a força enigmática do fado. Apesar de só se ter estreado nos coliseus do Porto e de Lisboa em 1985, calcorreou, desde 1943, grande parte das mais emblemáticas salas de espectáculo do Mundo inteiro, como o Olympia (Paris), Philarmonic Hall (Nova Iorque), Palais des Beaux Arts (Bruxelas) ou o London Palladium, coleccionando elogios: "a mais excitante importação desde Edith Piaf" ("Variety"), "voz de uma pureza tão rara quanto a sua extensão" ("Le Figaro") ou "mulher de uma poderosa emoção" ("The New York Times").
Com a independência só possível em quem nunca se assumiu como "amaliana" convicta, Simone de Oliveira confessa só ter tido percepção da popularidade global da diva do fado quando, em 1972, viu "as 45 mil pessoas que lotavam o Canecão, no Rio de Janeiro, a erguerem-se quando ela entrou para fazer parte do júri".
"Era uma força telúrica única", sintetiza a cantora e actriz.
Se as divisões que Amália suscitou são hoje matéria do passado, o risco que se coloca na actualidade será o de outra ordem. O editor, produtor e músico Tozé Brito alerta, por isso, para "o endeusamento excessivo" da figura e estabelece um paralelismo com o rock'n'roll, que, mesmo perdendo Elvis, nem por isso ficou refém do seu desaparecimento: "O fado já existia antes da Amália e existirá. Ela é o D. Afonso Henriques do fado. Tem esse mérito. Outros se lhe seguiram e, porventura, melhores".
A tese de Tozé Brito ganha força quando se constata que, apesar da entronização como a voz do fado por excelência, Amália nunca foi objecto dos estudos que o seu percurso justificaria. Pela popularidade de que desfrutou, sempre foi dada como adquirida a preservação da obra, o que provocou um inexplicável desleixo no tratamento do seu reportório, algo que só agora começa a ser rectificado. Prova disso é o facto de apenas existir uma biografia, da autoria de Vítor Pavão dos Santos, reeditada em 2005. Sintomática ainda é a ausência de uma edição integral e crítica da sua discografia.
Mesmo com todas essas lacunas, o afecto dos portugueses pela sua intérprete mais carismática de sempre está acima de qualquer suspeita. As largas centenas de milhares que viram o "biopic" e o êxito de vendas que tem sido o projecto Amália Hoje, de que fazem parte artistas como Sónia Tavares, Fernando Ribeiro e Nuno Gonçalves, provam que o culto amaliano está bem vivo.
Uma devoção que a artista, em entrevista ao seu biógrafo, explicava de modo singular: "Há entre mim e o povo português uma amizade. Não sou vista como artista. Faço parte dos amigos dos portugueses".
Fonte: JN