Polanski, o realizador fantasma
A certa altura de uma conferência de imprensa de “lotação esgotada” que hoje forçou os seguranças a fechar as portas do salão do Hotel Hyatt de Berlim, Ewan McGregor faz uma imitação perfeita de Roman Polanski a explicar a um aderecista como manejar um berbequim. “Por que raio estás tu a fazer assim? Não é assim! É assim!”.
Isto vem a propósito da pergunta sacramental feita a McGregor, o actor escocês revelado por Trainspotting que é o herói de The Ghost Writer, cuja estreia mundial ocorreu ontem à noite em Berlim: “Como foi trabalhar com Roman Polanski?”
E McGregor – depois de meia-dúzia de banalidades de Pierce Brosnan – não se faz rogado.
“Senti-me verdadeiramente desafiado como actor – foi um dos raros casos em que posso dizer que ele é tão responsável pela minha interpretação como eu. Ele não só me dirigiu como actor, mas dirigiu verdadeiramente a interpretação da personagem”, disse o actor. E para quem ainda tinha dúvidas, acrescentou: “Num plateau, ele é totalmente responsável por tudo: gostava de ser ele o actor, o aderecista, o director de fotografia, o assistente... Tem a sua mão em tudo. Se não gosta de alguma coisa, Roman di-lo sem delicadezas nem pezinhos de lã. Isso pode, às vezes, ser desconfortável para os nossos egos, mas depois da história com o aderecista percebi que não é nada pessoal. Ele quer que tudo seja perfeito. É como uma mãe e, por muito chato que isso seja, tem quase sempre razão!”
Retido em casa
A “mãe”, neste caso Roman Polanski, ficou literalmente retida em casa. O cineasta polaco não está em Berlim: está na sua casa da Suíça, sob prisão domiciliária, enquanto se desenrola o complexo folhetim judicial que o persegue desde que, em 1977, fugiu à justiça americana para evitar ser preso sob acusações de abuso de uma menor num julgamento altamente controverso. O reacender do folhetim em Setembro último, com a sua prisão a pedido das autoridades americanas, tem polarizado o mundo cultural e está ainda longe de ficar resolvido – depois de várias semanas em prisão preventiva, Polanski está neste momento confinado ao seu chalet de Gstaad e qualquer extradição para os EUA para ir a julgamento levará ainda muito tempo e muito trâmite judicial. Inevitavelmente, a sua ausência lança um olhar completamente diferente sobre The Ghost Writer, filme que Polanski começou por nem querer fazer.
O romancista inglês Robert Harris falara ao cineasta do seu novo livro, sobre um escritor contratado para ajudar um ex-primeiro-ministro a escrever as suas memórias, e a ideia desagradara a Polanski – mas, quando recebeu as provas, telefonou a Harris a dizer que era exactamente isto que procurava, um filme mais ligeiro depois de dois projectos de época exigentes (O Pianista e Oliver Twist).
Ghost writers, “escritores-fantasma”, são, no mundo da edição livreira anglo-americano, aqueles cujo nome nunca aparece nas autobiografias ou nos livros assinados por figuras públicas, mas que são os verdadeiros responsáveis pela sua forma definitiva – personagens anónimas como a de Ewan McGregor (cujo nome nunca é sequer mencionado nas duas horas de filme).
McGregor é contratado para dar forma ao manuscrito das memórias de um ex-primeiro-ministro britânico (Brosnan, num papel praticamente secundário) que reside nos EUA e acaba de ser colocado sob investigação pelo Tribunal dos Direitos Humanos pela possível cumplicidade em crimes de guerra no conflito do Iraque. E é contratado para substituir o anterior ghost writer que deu à costa afogado (um dos fantasmas que percorrem o filme).
Martin Wolf, da revista Der Spiegel, levanta a hipótese de Adam Lang, o primeiro-ministro que Harris admite ser inspirado por (mas não baseado em) Tony Blair (um dos fantasmas que se adivinham), ser um sósia velado de Polanski – alguém incompreendido, exilado, perseguido. Mas isso já é ler demasiado nas entrelinhas do que é, essencialmente, um thriller mainstream de factura superior, que tem ecos dos thrillers liberais de conspiração dos anos 1970 ou dos mistérios clássicos de Hitchcock.
Domínio formal
The Ghost Writer renova abertamente a vertente de género que Polanski sempre apreciou explorar e onde assinou filmes tão emblemáticos como A Semente do Diabo, Chinatown ou Frenético. Não que este esteja no mesmo patamar; mas, sobretudo na primeira hora, que se desenrola quase inteiramente na sumptuosa casa-design de Martha’s Vineyard (reconstituída nos estúdios alemães de Babelsberg, nos subúrbios de Berlim), onde Brosnan vive, é uma demonstração virtuosa de domínio formal do cinema narrativo, onde se sente um enorme prazer de Polanski em explorar as coordenadas do género.
O que vem na segunda metade e até ao excelente final, apesar de bem feito, já tomba mais no vulgar de Lineu do thriller político – e as indirectas à administração Bush, quer através de uma empresa de segurança chamada Hatherton (ler Halliburton) ou da visão fugaz de uma vice-presidente americana negra (ver Condoleeza Rice), vêm dar uma conotação demasiado tópica ao exercício de estilo.
É, evidentemente, legítimo perguntar quanto de Polanski pode realmente haver num filme que não acabou fisicamente – afinal, McGregor foi buscar a história do aderecista para demonstrar o envolvimento do cineasta nos mais ínfimos detalhes da produção. Mas, em depoimento prévio no início da conferência de imprensa, Robert Benmussa, sócio e produtor de Polanski, explica que “ele tinha completado uma primeira montagem em Agosto – e quem já trabalhou com o Roman sabe que uma primeira montagem dele é um filme pronto a 99 por cento”. A “afinação” ficou a cargo de Benmussa e de Hervé de Luze, montador do cineasta há mais de 20 anos, e foi supervisionada pelo realizador através de DVD que ia recebendo por intermédio do seu advogado.
Mas, mesmo confirmada a “paternidade”, é inevitável que The Ghost Writer fique marcado pela ausência de Roman Polanski, impedindo-nos de ver o filme por aquilo que ele é realmente. Como se Polanski fosse o último, e o maior, dos fantasmas que povoam o filme.
Fonte: Público
Isto vem a propósito da pergunta sacramental feita a McGregor, o actor escocês revelado por Trainspotting que é o herói de The Ghost Writer, cuja estreia mundial ocorreu ontem à noite em Berlim: “Como foi trabalhar com Roman Polanski?”
E McGregor – depois de meia-dúzia de banalidades de Pierce Brosnan – não se faz rogado.
“Senti-me verdadeiramente desafiado como actor – foi um dos raros casos em que posso dizer que ele é tão responsável pela minha interpretação como eu. Ele não só me dirigiu como actor, mas dirigiu verdadeiramente a interpretação da personagem”, disse o actor. E para quem ainda tinha dúvidas, acrescentou: “Num plateau, ele é totalmente responsável por tudo: gostava de ser ele o actor, o aderecista, o director de fotografia, o assistente... Tem a sua mão em tudo. Se não gosta de alguma coisa, Roman di-lo sem delicadezas nem pezinhos de lã. Isso pode, às vezes, ser desconfortável para os nossos egos, mas depois da história com o aderecista percebi que não é nada pessoal. Ele quer que tudo seja perfeito. É como uma mãe e, por muito chato que isso seja, tem quase sempre razão!”
Retido em casa
A “mãe”, neste caso Roman Polanski, ficou literalmente retida em casa. O cineasta polaco não está em Berlim: está na sua casa da Suíça, sob prisão domiciliária, enquanto se desenrola o complexo folhetim judicial que o persegue desde que, em 1977, fugiu à justiça americana para evitar ser preso sob acusações de abuso de uma menor num julgamento altamente controverso. O reacender do folhetim em Setembro último, com a sua prisão a pedido das autoridades americanas, tem polarizado o mundo cultural e está ainda longe de ficar resolvido – depois de várias semanas em prisão preventiva, Polanski está neste momento confinado ao seu chalet de Gstaad e qualquer extradição para os EUA para ir a julgamento levará ainda muito tempo e muito trâmite judicial. Inevitavelmente, a sua ausência lança um olhar completamente diferente sobre The Ghost Writer, filme que Polanski começou por nem querer fazer.
O romancista inglês Robert Harris falara ao cineasta do seu novo livro, sobre um escritor contratado para ajudar um ex-primeiro-ministro a escrever as suas memórias, e a ideia desagradara a Polanski – mas, quando recebeu as provas, telefonou a Harris a dizer que era exactamente isto que procurava, um filme mais ligeiro depois de dois projectos de época exigentes (O Pianista e Oliver Twist).
Ghost writers, “escritores-fantasma”, são, no mundo da edição livreira anglo-americano, aqueles cujo nome nunca aparece nas autobiografias ou nos livros assinados por figuras públicas, mas que são os verdadeiros responsáveis pela sua forma definitiva – personagens anónimas como a de Ewan McGregor (cujo nome nunca é sequer mencionado nas duas horas de filme).
McGregor é contratado para dar forma ao manuscrito das memórias de um ex-primeiro-ministro britânico (Brosnan, num papel praticamente secundário) que reside nos EUA e acaba de ser colocado sob investigação pelo Tribunal dos Direitos Humanos pela possível cumplicidade em crimes de guerra no conflito do Iraque. E é contratado para substituir o anterior ghost writer que deu à costa afogado (um dos fantasmas que percorrem o filme).
Martin Wolf, da revista Der Spiegel, levanta a hipótese de Adam Lang, o primeiro-ministro que Harris admite ser inspirado por (mas não baseado em) Tony Blair (um dos fantasmas que se adivinham), ser um sósia velado de Polanski – alguém incompreendido, exilado, perseguido. Mas isso já é ler demasiado nas entrelinhas do que é, essencialmente, um thriller mainstream de factura superior, que tem ecos dos thrillers liberais de conspiração dos anos 1970 ou dos mistérios clássicos de Hitchcock.
Domínio formal
The Ghost Writer renova abertamente a vertente de género que Polanski sempre apreciou explorar e onde assinou filmes tão emblemáticos como A Semente do Diabo, Chinatown ou Frenético. Não que este esteja no mesmo patamar; mas, sobretudo na primeira hora, que se desenrola quase inteiramente na sumptuosa casa-design de Martha’s Vineyard (reconstituída nos estúdios alemães de Babelsberg, nos subúrbios de Berlim), onde Brosnan vive, é uma demonstração virtuosa de domínio formal do cinema narrativo, onde se sente um enorme prazer de Polanski em explorar as coordenadas do género.
O que vem na segunda metade e até ao excelente final, apesar de bem feito, já tomba mais no vulgar de Lineu do thriller político – e as indirectas à administração Bush, quer através de uma empresa de segurança chamada Hatherton (ler Halliburton) ou da visão fugaz de uma vice-presidente americana negra (ver Condoleeza Rice), vêm dar uma conotação demasiado tópica ao exercício de estilo.
É, evidentemente, legítimo perguntar quanto de Polanski pode realmente haver num filme que não acabou fisicamente – afinal, McGregor foi buscar a história do aderecista para demonstrar o envolvimento do cineasta nos mais ínfimos detalhes da produção. Mas, em depoimento prévio no início da conferência de imprensa, Robert Benmussa, sócio e produtor de Polanski, explica que “ele tinha completado uma primeira montagem em Agosto – e quem já trabalhou com o Roman sabe que uma primeira montagem dele é um filme pronto a 99 por cento”. A “afinação” ficou a cargo de Benmussa e de Hervé de Luze, montador do cineasta há mais de 20 anos, e foi supervisionada pelo realizador através de DVD que ia recebendo por intermédio do seu advogado.
Mas, mesmo confirmada a “paternidade”, é inevitável que The Ghost Writer fique marcado pela ausência de Roman Polanski, impedindo-nos de ver o filme por aquilo que ele é realmente. Como se Polanski fosse o último, e o maior, dos fantasmas que povoam o filme.
Fonte: Público