DocLisboa: Conta-me histórias
É um lugar-comum, é certo, mas é um lugar-comum apropriado à competição internacional do DocLisboa, festival que arranca hoje e se estende até dia 25. Este ano, o que interessa são as histórias, as experiências, as pessoas, que, é verdade, também já interessavam em anos anteriores - ou não fosse a vocação do cinema documental a de falar dos tempos e dos costumes - mas que, este ano, surgem maioritariamente de modo mais directo e menos experimental do que em prévias edições do festival.
De facto, a maior parte das longas que já tivemos oportunidade de ver afasta-se do experimentalismo, não procura encontrar novos modos de filmar o documentário, não debate as fronteiras formais que separam o filme de ficção do filme documental (embora questione repetidamente os limites do que pode/deve ser mostrado dentro de um filme que procura ser um registo da realidade).
A selecção competitiva do festival aposta maioritariamente na vertente mais "clássica" do documentário como testemunho social, olhar lúcido sobre uma realidade que não é sempre agradável (e, em alguns dos casos da selecção 2009, é mesmo muito dura, quase insustentável), mas deve ser confrontada. O que é também uma consequência da actual produção mundial do formato, visto que, como sempre, o Doc funciona como uma espécie de best of dos principais festivais documentais do mundo.
Entre os filmes a concurso encontramos os vencedores do venerado FIDMarseille, Material, de Thomas Heise, e Videomappings:Aida, Palestine, de Till Roeskens, e do Silverdocs de Washington, October Country, de Michael Palmieri e Donal Mosher, igualmente a concurso em Locarno.
Aliás, a "abertura" oficial do festival, La Forteresse, do hispano-suíço Fernand Melgar, exibida hoje na Culturgest, ganhou o Leopardo de Ouro na competição Cineastas do Presente em Locarno 2008. À mesma hora, no cinema Londres, passa Below Sea Level, que o italiano Gianfranco Rosi foi rodar aos EUA e trouxe o prémio de melhor documentário na selecção paralela Horizontes do Festival de Veneza 2008.
São dois bons exemplos do rumo que irá nortear o festival (festival que, por sinal, parece querer meter o Rossio na Rua da Betesga: numa opção de programação que nos parece bastante infeliz, os primeiros quatro dias trazem as primeiras exibições de "apenas" 25 das 36 entradas a concurso, entre curtas, médias e longas). As primeiras longas da selecção competitiva, à imagem de muito do que se seguirá, são documentários ditos "de imersão", sem editorialização nem comentário, apenas com legendas pontuais, sobre gente que procura manter um semblante de vida normal em situações que são tudo menos normais.
A vantagem vai para La Forteresse, que Fernand Melgar diz nas notas de produção ter sido pensado em resposta à passagem, com 68 por cento de votos a favor, de leis extremamente restritivas relativamente aos pedidos de asilo de emigrantes que pretendem estabelecer-se na Suíça.
Melgar obteve acordo para rodar num dos centros de processamento, na aldeia francófona de Vallorbe, onde os requerentes são acolhidos durante o processo burocrático. E aquilo que vemos é uma equipa de funcionários que nunca perde de vista que está a tratar com gente à deriva que viu o pior que o homem pode fazer ao homem nos países de onde vem (Iraque, Somália, Colômbia, Togo...) e que procura, na medida do possível, ajudá-los a reconstruir um semblante de vida normal. Tanto os funcionários como os requerentes sabem bem que apenas uma pequena fracção terá verdadeiramente a oportunidade de refazer a vida - mas nem por isso desistem de tentar. Melgar cria um diário atento e sensível de um limbo fora do mundo contado sem ilusões nem condescendência mas com empatia e pragmatismo.
Slab City, a base militar californiana abandonada que é o cenário de Below Sea Level, é também ela um microcosmos exterior à realidade. Slab City é a cidade improvisada onde Christopher McCandless encontrou o amor em O Lado Selvagem, de Sean Penn, comunidade que parece saída de Kerouac, Carver ou Bukowski, formada por deserdados da sorte que perderam tudo o que tinham, uma razão para viver, uma ligação à realidade. Nas palavras de Mike, um dos residentes, é "um país estrangeiro, sem água nem electricidade, abaixo do nível do mar".
Gianfranco Rosi acompanha meia dúzia de residentes cujas histórias vai revelando aos poucos, à imagem do modo como eles próprios se foram entrosando na comunidade, e desenha um retrato não poucas vezes comovente de gente que soçobrou do outro lado da realidade na sequência de uma tragédia, que viu o seu sonho americano destruído, mas não desiste de o tentar recriar. No entanto, há momentos em que a frontalidade dos depoimentos desta gente que se coloca à parte das convenções sociais face a uma câmara constantemente presente cria uma sensação desagradável de voyeurismo, no que é também uma das questões centrais da programação deste ano e à qual voltaremos ao longo dos próximos dias - qual é o limite até onde um documentarista deve ir? Qual é o momento onde se pára de filmar, sob risco de tornar o filme numa espécie de reality show gratuito ou explorador?
DocLisboa: Competição Internacional
La Forteresse, de Fernand Melgar. Culturgest (Grande Auditório), quinta (15) às 21h00, e cinema Londres (sala 1), domingo (18) às 18h00
Below Sea Level, de Gianfranco Rosi. Londres (sala 2), quinta (15) às 21h00, e Culturgest (Grande Auditório), terça (20) às 21h00
Fonte: Público
De facto, a maior parte das longas que já tivemos oportunidade de ver afasta-se do experimentalismo, não procura encontrar novos modos de filmar o documentário, não debate as fronteiras formais que separam o filme de ficção do filme documental (embora questione repetidamente os limites do que pode/deve ser mostrado dentro de um filme que procura ser um registo da realidade).
A selecção competitiva do festival aposta maioritariamente na vertente mais "clássica" do documentário como testemunho social, olhar lúcido sobre uma realidade que não é sempre agradável (e, em alguns dos casos da selecção 2009, é mesmo muito dura, quase insustentável), mas deve ser confrontada. O que é também uma consequência da actual produção mundial do formato, visto que, como sempre, o Doc funciona como uma espécie de best of dos principais festivais documentais do mundo.
Entre os filmes a concurso encontramos os vencedores do venerado FIDMarseille, Material, de Thomas Heise, e Videomappings:Aida, Palestine, de Till Roeskens, e do Silverdocs de Washington, October Country, de Michael Palmieri e Donal Mosher, igualmente a concurso em Locarno.
Aliás, a "abertura" oficial do festival, La Forteresse, do hispano-suíço Fernand Melgar, exibida hoje na Culturgest, ganhou o Leopardo de Ouro na competição Cineastas do Presente em Locarno 2008. À mesma hora, no cinema Londres, passa Below Sea Level, que o italiano Gianfranco Rosi foi rodar aos EUA e trouxe o prémio de melhor documentário na selecção paralela Horizontes do Festival de Veneza 2008.
São dois bons exemplos do rumo que irá nortear o festival (festival que, por sinal, parece querer meter o Rossio na Rua da Betesga: numa opção de programação que nos parece bastante infeliz, os primeiros quatro dias trazem as primeiras exibições de "apenas" 25 das 36 entradas a concurso, entre curtas, médias e longas). As primeiras longas da selecção competitiva, à imagem de muito do que se seguirá, são documentários ditos "de imersão", sem editorialização nem comentário, apenas com legendas pontuais, sobre gente que procura manter um semblante de vida normal em situações que são tudo menos normais.
A vantagem vai para La Forteresse, que Fernand Melgar diz nas notas de produção ter sido pensado em resposta à passagem, com 68 por cento de votos a favor, de leis extremamente restritivas relativamente aos pedidos de asilo de emigrantes que pretendem estabelecer-se na Suíça.
Melgar obteve acordo para rodar num dos centros de processamento, na aldeia francófona de Vallorbe, onde os requerentes são acolhidos durante o processo burocrático. E aquilo que vemos é uma equipa de funcionários que nunca perde de vista que está a tratar com gente à deriva que viu o pior que o homem pode fazer ao homem nos países de onde vem (Iraque, Somália, Colômbia, Togo...) e que procura, na medida do possível, ajudá-los a reconstruir um semblante de vida normal. Tanto os funcionários como os requerentes sabem bem que apenas uma pequena fracção terá verdadeiramente a oportunidade de refazer a vida - mas nem por isso desistem de tentar. Melgar cria um diário atento e sensível de um limbo fora do mundo contado sem ilusões nem condescendência mas com empatia e pragmatismo.
Slab City, a base militar californiana abandonada que é o cenário de Below Sea Level, é também ela um microcosmos exterior à realidade. Slab City é a cidade improvisada onde Christopher McCandless encontrou o amor em O Lado Selvagem, de Sean Penn, comunidade que parece saída de Kerouac, Carver ou Bukowski, formada por deserdados da sorte que perderam tudo o que tinham, uma razão para viver, uma ligação à realidade. Nas palavras de Mike, um dos residentes, é "um país estrangeiro, sem água nem electricidade, abaixo do nível do mar".
Gianfranco Rosi acompanha meia dúzia de residentes cujas histórias vai revelando aos poucos, à imagem do modo como eles próprios se foram entrosando na comunidade, e desenha um retrato não poucas vezes comovente de gente que soçobrou do outro lado da realidade na sequência de uma tragédia, que viu o seu sonho americano destruído, mas não desiste de o tentar recriar. No entanto, há momentos em que a frontalidade dos depoimentos desta gente que se coloca à parte das convenções sociais face a uma câmara constantemente presente cria uma sensação desagradável de voyeurismo, no que é também uma das questões centrais da programação deste ano e à qual voltaremos ao longo dos próximos dias - qual é o limite até onde um documentarista deve ir? Qual é o momento onde se pára de filmar, sob risco de tornar o filme numa espécie de reality show gratuito ou explorador?
DocLisboa: Competição Internacional
La Forteresse, de Fernand Melgar. Culturgest (Grande Auditório), quinta (15) às 21h00, e cinema Londres (sala 1), domingo (18) às 18h00
Below Sea Level, de Gianfranco Rosi. Londres (sala 2), quinta (15) às 21h00, e Culturgest (Grande Auditório), terça (20) às 21h00
Fonte: Público