Poderá Obama mudar um mundo?
Há um mundo em desordem e há Barack Obama. A ordem que emergir desta desordem dependerá, em boa medida, da forma como a América conseguir vencer a crise económica. Ninguém quer subestimar o factor Obama, mas ninguém ousa arriscar grandes previsões. 2012 é já amanhã.
De um lado, uma crise mundial que se aproxima vertiginosamente de uma segunda Grande Depressão, só que desta vez à escala global. Do outro, Barack Obama, o novo Presidente americano que mobilizou o entusiasmo e a esperança do mundo inteiro. De um lado, um mundo fragmentado, próximo do caos, cuja face subitamente deixámos de reconhecer. Do outro, o rosto que é um ícone mundial e que prometeu mudar a América e mudar o mundo. De um lado, a pesada herança de uma Administração que alienou a boa vontade do mundo em relação à América, duas guerras por concluir, a ameaça de um Irão nuclear. Do outro, um jovem Presidente que ambicionava definir uma nova agenda para o mundo.
Em suma, há um mundo em desordem e há Barack Obama. E duas questões fundamentais. A primeira é sobre que nova ordem internacional poderá emergir desta crise e que lugar estará reservado à América. A segunda, até que ponto o novo Presidente eleito conseguirá fazer a diferença.
Na azáfama dos preparativos da tomada de posse do 44.º Presidente dos Estados Unidos, no dia 20 de Janeiro de 2009, o optimismo não é, de modo nenhum, o sentimento que mais abunda entre os analistas. Ninguém quer subestimar o factor Obama mas também ninguém quer arriscar grandes previsões.
Joseph Nye, o professor de Harvard que teorizou sobre o soft-power americano, dá a resposta que melhor pode resumir este estado de espírito. “Temo que tenhamos pela frente uma profunda e dolorosa recessão que se pode prolongar por alguns anos, mas acredito que o programa de Barack Obama para estimular a economia e um novo sistema de regulação dos mercados financeiros acabarão por conduzir à recuperação. Estou pessimista no curto prazo, mas optimista no longo prazo.”
Num artigo recente, Nye resumia o dilema essencial do novo Presidente eleito. “De todas as pessoas que vão querer fixar a sua agenda, apenas uma terá o poder de o fazer eficazmente
— o Presidente cessante George W. Bush. Deixa-lhe em legado uma economia em crise, duas guerras por concluir, um combate inacabado contra o terrorismo, um Irão com ambições nucleares... Se Obama falhar no combate a estes fogos mundiais, arrisca-se a vê-los consumir o seu capital político, mas se se limitar apenas a combatê-los, ficará enredado nas prioridades do seu antecessor.” Concluía o professor de Harvard: “O Presidente eleito tem de lidar com o passado ao mesmo tempo que desenha um novo futuro.” É este o dilema maior de Barack Obama nos próximos quatro anos. Na noite da sua vitória, avisou que “as coisas ainda vão piorar antes de começarem a melhorar”. Desde esse dia, as “coisas” não pararem de se agravar. A crise económica continua a sua descida aos infernos, destruindo diariamente os sucessivos diques que poderiam travá-la. O dinheiro não circula, as falências multiplicam-se, o desemprego sobe, os preços caem até à ameaça de deflação, as grandes economias emergentes que poderiam puxar pela economia mundial entram em águas agitadas.
A realidade obrigou-o a saltar para a ribalta mais cedo do que previra e a gerir uma das transições mais rápidas da história americana. Pôs de pé uma equipa de luxo. Concentrou a sua atenção na economia. Terá a missão quase impossível de equilibrar a esperança, que é a sua “arma secreta” mais poderosa, com a redução das expectativas. Dos americanos que o elegeram porque ele lhes prometeu a mudança, e do mundo que espera dele “milagres” que muito provavelmente não poderá realizar.
Tarefa número um: recuperar a economia
Internamente, Obama desfruta de condições que continuam a ser excepcionais. As últimas sondagens citadas pela imprensa indicam que uma grande maioria dos americanos continua a pensar que ele fará aquilo que prometeu. Os analistas de todos os quadrantes rendem-se à forma como está a gerir a transição. Goza no Congresso de uma sólida maioria em ambas as câmaras. E talvez não menos importante, a dimensão da crise económica, se é um tremendo problema, também lhe oferece uma extraordinária oportunidade, na medida em que lhe permite intervir a uma escala praticamente sem precedentes desde o New Deal.
“Obama falava a sério quando disse que ia mudar o mundo. Agora tem uma crise nacional, um mandato pessoal, um Congresso obediente, um público ansioso e, à sua disposição, a maior montanha de dinheiro da História”, argumenta o colunista neoconservador Charles Krauthammer, no Washington Post, não sem uma boa dose de cinismo.
“Em alguns aspectos, é bom que a crise se tenha agudizado antes de Obama ter sido eleito. Isso faz com que não seja visto como um dos responsáveis por ela, dando-lhe mais espaço de manobra e mais tempo para dar os passos necessários”, diz Charles Kupchan, investigador do Council on Foreign Relations de Washington.
Mas terá de começar com “objectivos mais modestos, antes de definir objectivos mais ambiciosos”. Nesse sentido, acrescenta Kupchan, a sua missão imediata é sobretudo a de “controlar os estragos”. Só no médio prazo a crise “pode abrir uma oportunidade à mudança”. “Permite um muito maior nível de envolvimento do Governo na economia, abre as portas aos grandes investimentos em infraestruturas, à revolução verde, à renovação do sistema de educação.” E, naturalmente, propicia a construção de uma nova arquitectura financeira mundial e um modelo económico “assente numa nova distribuição da riqueza e num novo equilíbrio entre consumo, poupança e dívida”. Mas avisa: “É preciso pensar nisto tudo como um processo em fases.”
Maria João Rodrigues, académica e conselheira da Comissão Europeia, vai ainda mais longe. “A configuração geopolítica do mundo que emergir desta crise dependerá, em grande medida, da capacidade e da rapidez da reconversão da economia americana.” Lembra que estamos ainda no início de uma crise que tanto se pode vir a traduzir numa recessão prolongada como numa depressão profunda. “As saídas ainda estão em aberto.” Considera dois cenários possíveis. “Se Obama conseguir levar a cabo um gigantesco processo de reconversão económica, social e financeira da América, isso permitirá reconstituir as bases da sua liderança mundial.” Se a recessão se transformar numa depressão e os Estados Unidos tardarem em dar a volta, o cenário alternativo será “uma estrutura multipolar com uma liderança americana enfraquecida”.
Álvaro de Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da UE, sublinha a oportunidade. “Se o Presidente Obama conseguir levar a economia americana para um modelo mais avançado, que leve em conta os desafios ambientais, que reforme as infra-estruturas, os serviços públicos, que invista na qualidade de vida das pessoas, então é possível que o mundo que venha a emergir desta profunda recessão seja de novo um mundo em que a América volte a liderar.” A dúvida maior, acrescenta, “é que ainda não sabemos em que grau e com que consequências esta crise económica mundial vai afectar as grandes economias emergentes — sobretudo a China, Índia e Brasil”. Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, Strobe Talbot, que foi subsecretário de Estado de Bill Clinton e é hoje um dos consultores do novo Presidente, diz que o que está em causa “é impedir que a globalização se vire contra nós todos”. Lembra o que o próprio Presidente eleito disse na noite da sua vitória: “Temos pela frente problemas muito difíceis. Não esperem que sejam resolvidos num ano, nem talvez em quatro.” Concluí que “muita coisa dependerá da forma como ele combinar as políticas domésticas e internacionais. Uma política activa e inovadora para as alterações climáticas renovará o papel de liderança da América, e o respeito que conseguirmos ganhar globalmente nesse dossier reflectir-se-á positivamente na agenda interna.”
Stefan Halper, que foi conselheiro das administrações Nixon, Ford e Reagan e que hoje dirige o Programa de Estudos Atlânticos da Universidade de Cambridge, também põe a tónica na importância vital da recuperação económica da América, sublinhando que ela não interessa apenas aos americanos. “Diga-se o que se disser, a economia americana, entre aquilo que compra e aquilo que vende, ainda representa 30 por cento da actividade económica mundial. Quando começar a mover-se de novo, isso terá um enorme impacte mundial.” Mas adverte que “algumas coisas estão a mudar tão depressa que é difícil antecipar as suas consequências”. Ian Lesser, do German Marshall Fund de Washington, tem uma ideia igualmente pragmática e prudente sobre aquilo que Obama poderá fazer. “A nova administração partirá de um conjunto de princípios muito diferente e terá uma abordagem diferente”, diz. “O problema é que não terá, pelo menos de início, muito tempo para se concentrar na arena internacional. A economia vai ser tão dominante, a americana e a mundial, que vai provavelmente consumir grande parte da energia da nova administração.” Lesser não aceita a ideia de que desta crise saia necessariamente uma reconfiguração mundial muito diferente da actual. “É uma questão em aberto. Se tudo tivesse ficado na mesma, sem esta crise, talvez pudéssemos assistir a uma transferência acelerada de riqueza e de poder de Ocidente para Oriente.
Mas a crise pode ter efeitos absolutamente imprevisíveis e, dentro de quatro anos, podemos olhar de novo para a cena internacional e verificar que os EUA recuperaram, que a China mergulhou no caos, que a Rússia ainda não se refez do facto de ter de lidar com o petróleo a 30 dólares e não a 130. É isso que creio que vêm interromper muitas das certezas que tínhamos antes.”
Recuperar a credibilidade
A prazo, os analistas estão quase todos de acordo em que o grande desafio do novo Presidente, aquele pelo qual a sua administração será provavelmente avaliada, é o de restituir à América a credibilidade perdida. Stefan Halper considera que a sua grande tarefa é “demonstrar nos próximos quatro anos que a América faz parte do futuro, que os valores americanos e que o sonho americano ainda são consistentes”. Há, diz o professor de Cambridge, as crises que estão por resolver, o Iraque e o Irão e o Médio Oriente e o Afeganistão e que, muitas delas, poderão ser apenas contidas. Mas há um desafio a mais longo prazo, “porventura o maior desafio para os EUA e para a Europa nos próximos 50 anos: voltar a mostrar ao mundo que o nosso modelo democrático de desenvolvimento é o melhor”. “Será esta provavelmente a grande batalha de ideias que pode moldar o futuro e Barack Obama terá de ilustrar de novo a importância das liberdades de que desfrutamos, porque são esses os valores que podem ser desafiados pelos modelos de desenvolvimento que surgem a leste.” Terá de fazê-lo “com uma mensagem de multilateralismo e de abertura”.
Henry Kissinger, no texto que escreveu para a edição especial da Economist “The World in 2009”, defende que é preciso “um novo diálogo entre a América e o resto do mundo”. Se este diálogo permitir que, dentro de algum tempo, o resto do mundo possa concluir que uma América menos poderosa se mantém ainda uma na América “indispensável”, então podemos estar perante o início de uma nova ordem e de uma nova era, considera o antigo secretário de Estado.
David Ignatius, o colunista do Washington Post, diz que o desafio maior de Obama é conseguir responder de forma positiva àquilo que Zbigniew Brzezinski, que é um dos seus mais famosos mentores, designa por “despertar político global” e transformar os EUA num aliado dos movimentos e das forças favoráveis à mudança. “As forças que manifestam em todo o mundo um desejo de respeito, de dignidade e de paz.”
Lesser acrescenta uma nota de prudência que resulta da extrema imponderabilidade da situação internacional e que pode alterar radicalmente as prioridades do Presidente. “A China pode estar em turbulência no próximo ano por causa da crise. Pode haver problemas dramáticos no Paquistão ou no Irão e só porque esta administração está mais aberta à negociação isso não quer dizer que esteja disposta a ntolerar, por exemplo, um Irão nuclear.”
A sua conclusão: “Haverá surpresas.” Que ninguém pode prever com segurança de onde virão. George W. Bush iniciou o seu primeiro mandato prometendo uma política externa modesta. O 11 de Setembro levou a uma verdadeira revolução da política externa americana. A vantagem é que esta será uma administração de gente “pragmática e com experiência, que não actuará em função da ideologia”, diz Lesser.
Emular Roosevelt
O homem que carrega aos ombros o fardo de “mudar o mundo” continua tranquilo e confiante. Acaba de ser eleito pela Time americana a figura do ano de 2008. Recebe a equipa da revista no seu modesto gabinete de trabalho em Chicago. Sabe com o que conta. “Não é claro que a economia já tenha atingido o fundo. E, mesmo que consigamos dar todos os passos necessários, daqui a dois anos pode ainda não ter recuperado totalmente.” Confessa algumas das outras coisas que lhe tiram o sono. O Afeganistão e as tensões entre o Paquistão e a Índia. A proliferação nuclear. As alterações climáticas: “Todos os indicadores vão no sentido de que estão a acontecer mais depressa do que aquilo que até os cientistas mais pessimistas antecipavam há dois ou três anos.”
Não conseguirá responder a tudo ao mesmo tempo. Haverá regiões do mundo que não lhe merecerão a atenção a que se sentiriam com direito. A outras, como à Europa, pedirá talvez mais do que estarão dispostas a conceder. Internamente, as expectativas mantêm-se muito elevadas. Uma sondagem publicada pelo Washington Post-ABC News há menos de uma semana indicava que uma enorme maioria dos americanos continua bastante optimista sobre aquilo que o Presidente poderá vir a fazer. Setenta e seis por cento aprovam a forma como está a liderar a transição e quase metade dos inquiridos acredita que ele pode dar rapidamente a volta à situação económica. A saúde, o combate às alterações climáticas ou a possibilidade de dar às famílias mais tempo para pagarem as suas hipotecas figuram entre as suas preocupações maiores. “À volta da mesa de Natal dos americanos só haverá um tema de conversa: a economia”, diz Stefan Halper. Mas também querem que ponha termo ao envolvimento americano no Iraque ou (em menor número) que encerre Guantánamo.
Quando a Time lhe pergunta o que espera ter conseguido dentro de dois anos, Obama apresenta uma longa lista preparada para ser conferida item a item. “Ajudámos a recuperar a economia do que é a maior crise desde a Grande Depressão? Criámos nova regulação financeira e novas regras que garantam que estas crises não voltam a acontecer? Criámos empregos que permitam às famílias ser auto-suficientes? Avançámos de forma significativa na redução dos custos da saúde e alargámos a cobertura? Lançámos aquilo que pode ser um projecto de uma década para virar a América para uma nova economia da energia? Começámos aquilo que pode ser um projecto ainda mais longo para revitalizar o sistema das escolas públicas? Fechámos Guantánamo de forma responsável, acabámos com a tortura e repusemos o equilíbrio entre as nossas necessidades de segurança e a nossa Constituição? Reconstruímos alianças à volta do mundo de forma efectiva? Retirámos as tropas do Iraque e fortalecemos a nossa política no Afeganistão, não apenas militarmente mas também política e economicamente? Conseguimos revigorar as instituições internacionais para lidar com ameaças transnacionais como o clima, que não podemos resolver sozinhos?”
Tarefa ciclópica? Sem dúvida. Mas afinal trata-se de Barack Obama, o homem que carrega nos ombros o destino de ter de ser o Roosevelt do século XXI. Há 75 anos, quando F.D.R. pronunciou o seu primeiro discurso inaugural em plena catástrofe económica, uma frase resumiu o seu estado de espírito: “Portanto, em primeiro lugar, deixem-me dizer-vos a minha profunda convicção de que a única coisa de que temos de ter medo é do próprio medo.” O novo Presidente terá, também ele, de escolher cuidadosamente as palavras. A sua tarefa não é mais pequena. Regressando à casa de partida, há um mundo nem desordem e há a extraordinária confiança de Barack Obama.
É tudo o que podemos saber.
Publicado na PÚBLICA a 28/11/2008
Fonte: Público
De um lado, uma crise mundial que se aproxima vertiginosamente de uma segunda Grande Depressão, só que desta vez à escala global. Do outro, Barack Obama, o novo Presidente americano que mobilizou o entusiasmo e a esperança do mundo inteiro. De um lado, um mundo fragmentado, próximo do caos, cuja face subitamente deixámos de reconhecer. Do outro, o rosto que é um ícone mundial e que prometeu mudar a América e mudar o mundo. De um lado, a pesada herança de uma Administração que alienou a boa vontade do mundo em relação à América, duas guerras por concluir, a ameaça de um Irão nuclear. Do outro, um jovem Presidente que ambicionava definir uma nova agenda para o mundo.
Em suma, há um mundo em desordem e há Barack Obama. E duas questões fundamentais. A primeira é sobre que nova ordem internacional poderá emergir desta crise e que lugar estará reservado à América. A segunda, até que ponto o novo Presidente eleito conseguirá fazer a diferença.
Na azáfama dos preparativos da tomada de posse do 44.º Presidente dos Estados Unidos, no dia 20 de Janeiro de 2009, o optimismo não é, de modo nenhum, o sentimento que mais abunda entre os analistas. Ninguém quer subestimar o factor Obama mas também ninguém quer arriscar grandes previsões.
Joseph Nye, o professor de Harvard que teorizou sobre o soft-power americano, dá a resposta que melhor pode resumir este estado de espírito. “Temo que tenhamos pela frente uma profunda e dolorosa recessão que se pode prolongar por alguns anos, mas acredito que o programa de Barack Obama para estimular a economia e um novo sistema de regulação dos mercados financeiros acabarão por conduzir à recuperação. Estou pessimista no curto prazo, mas optimista no longo prazo.”
Num artigo recente, Nye resumia o dilema essencial do novo Presidente eleito. “De todas as pessoas que vão querer fixar a sua agenda, apenas uma terá o poder de o fazer eficazmente
— o Presidente cessante George W. Bush. Deixa-lhe em legado uma economia em crise, duas guerras por concluir, um combate inacabado contra o terrorismo, um Irão com ambições nucleares... Se Obama falhar no combate a estes fogos mundiais, arrisca-se a vê-los consumir o seu capital político, mas se se limitar apenas a combatê-los, ficará enredado nas prioridades do seu antecessor.” Concluía o professor de Harvard: “O Presidente eleito tem de lidar com o passado ao mesmo tempo que desenha um novo futuro.” É este o dilema maior de Barack Obama nos próximos quatro anos. Na noite da sua vitória, avisou que “as coisas ainda vão piorar antes de começarem a melhorar”. Desde esse dia, as “coisas” não pararem de se agravar. A crise económica continua a sua descida aos infernos, destruindo diariamente os sucessivos diques que poderiam travá-la. O dinheiro não circula, as falências multiplicam-se, o desemprego sobe, os preços caem até à ameaça de deflação, as grandes economias emergentes que poderiam puxar pela economia mundial entram em águas agitadas.
A realidade obrigou-o a saltar para a ribalta mais cedo do que previra e a gerir uma das transições mais rápidas da história americana. Pôs de pé uma equipa de luxo. Concentrou a sua atenção na economia. Terá a missão quase impossível de equilibrar a esperança, que é a sua “arma secreta” mais poderosa, com a redução das expectativas. Dos americanos que o elegeram porque ele lhes prometeu a mudança, e do mundo que espera dele “milagres” que muito provavelmente não poderá realizar.
Tarefa número um: recuperar a economia
Internamente, Obama desfruta de condições que continuam a ser excepcionais. As últimas sondagens citadas pela imprensa indicam que uma grande maioria dos americanos continua a pensar que ele fará aquilo que prometeu. Os analistas de todos os quadrantes rendem-se à forma como está a gerir a transição. Goza no Congresso de uma sólida maioria em ambas as câmaras. E talvez não menos importante, a dimensão da crise económica, se é um tremendo problema, também lhe oferece uma extraordinária oportunidade, na medida em que lhe permite intervir a uma escala praticamente sem precedentes desde o New Deal.
“Obama falava a sério quando disse que ia mudar o mundo. Agora tem uma crise nacional, um mandato pessoal, um Congresso obediente, um público ansioso e, à sua disposição, a maior montanha de dinheiro da História”, argumenta o colunista neoconservador Charles Krauthammer, no Washington Post, não sem uma boa dose de cinismo.
“Em alguns aspectos, é bom que a crise se tenha agudizado antes de Obama ter sido eleito. Isso faz com que não seja visto como um dos responsáveis por ela, dando-lhe mais espaço de manobra e mais tempo para dar os passos necessários”, diz Charles Kupchan, investigador do Council on Foreign Relations de Washington.
Mas terá de começar com “objectivos mais modestos, antes de definir objectivos mais ambiciosos”. Nesse sentido, acrescenta Kupchan, a sua missão imediata é sobretudo a de “controlar os estragos”. Só no médio prazo a crise “pode abrir uma oportunidade à mudança”. “Permite um muito maior nível de envolvimento do Governo na economia, abre as portas aos grandes investimentos em infraestruturas, à revolução verde, à renovação do sistema de educação.” E, naturalmente, propicia a construção de uma nova arquitectura financeira mundial e um modelo económico “assente numa nova distribuição da riqueza e num novo equilíbrio entre consumo, poupança e dívida”. Mas avisa: “É preciso pensar nisto tudo como um processo em fases.”
Maria João Rodrigues, académica e conselheira da Comissão Europeia, vai ainda mais longe. “A configuração geopolítica do mundo que emergir desta crise dependerá, em grande medida, da capacidade e da rapidez da reconversão da economia americana.” Lembra que estamos ainda no início de uma crise que tanto se pode vir a traduzir numa recessão prolongada como numa depressão profunda. “As saídas ainda estão em aberto.” Considera dois cenários possíveis. “Se Obama conseguir levar a cabo um gigantesco processo de reconversão económica, social e financeira da América, isso permitirá reconstituir as bases da sua liderança mundial.” Se a recessão se transformar numa depressão e os Estados Unidos tardarem em dar a volta, o cenário alternativo será “uma estrutura multipolar com uma liderança americana enfraquecida”.
Álvaro de Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da UE, sublinha a oportunidade. “Se o Presidente Obama conseguir levar a economia americana para um modelo mais avançado, que leve em conta os desafios ambientais, que reforme as infra-estruturas, os serviços públicos, que invista na qualidade de vida das pessoas, então é possível que o mundo que venha a emergir desta profunda recessão seja de novo um mundo em que a América volte a liderar.” A dúvida maior, acrescenta, “é que ainda não sabemos em que grau e com que consequências esta crise económica mundial vai afectar as grandes economias emergentes — sobretudo a China, Índia e Brasil”. Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, Strobe Talbot, que foi subsecretário de Estado de Bill Clinton e é hoje um dos consultores do novo Presidente, diz que o que está em causa “é impedir que a globalização se vire contra nós todos”. Lembra o que o próprio Presidente eleito disse na noite da sua vitória: “Temos pela frente problemas muito difíceis. Não esperem que sejam resolvidos num ano, nem talvez em quatro.” Concluí que “muita coisa dependerá da forma como ele combinar as políticas domésticas e internacionais. Uma política activa e inovadora para as alterações climáticas renovará o papel de liderança da América, e o respeito que conseguirmos ganhar globalmente nesse dossier reflectir-se-á positivamente na agenda interna.”
Stefan Halper, que foi conselheiro das administrações Nixon, Ford e Reagan e que hoje dirige o Programa de Estudos Atlânticos da Universidade de Cambridge, também põe a tónica na importância vital da recuperação económica da América, sublinhando que ela não interessa apenas aos americanos. “Diga-se o que se disser, a economia americana, entre aquilo que compra e aquilo que vende, ainda representa 30 por cento da actividade económica mundial. Quando começar a mover-se de novo, isso terá um enorme impacte mundial.” Mas adverte que “algumas coisas estão a mudar tão depressa que é difícil antecipar as suas consequências”. Ian Lesser, do German Marshall Fund de Washington, tem uma ideia igualmente pragmática e prudente sobre aquilo que Obama poderá fazer. “A nova administração partirá de um conjunto de princípios muito diferente e terá uma abordagem diferente”, diz. “O problema é que não terá, pelo menos de início, muito tempo para se concentrar na arena internacional. A economia vai ser tão dominante, a americana e a mundial, que vai provavelmente consumir grande parte da energia da nova administração.” Lesser não aceita a ideia de que desta crise saia necessariamente uma reconfiguração mundial muito diferente da actual. “É uma questão em aberto. Se tudo tivesse ficado na mesma, sem esta crise, talvez pudéssemos assistir a uma transferência acelerada de riqueza e de poder de Ocidente para Oriente.
Mas a crise pode ter efeitos absolutamente imprevisíveis e, dentro de quatro anos, podemos olhar de novo para a cena internacional e verificar que os EUA recuperaram, que a China mergulhou no caos, que a Rússia ainda não se refez do facto de ter de lidar com o petróleo a 30 dólares e não a 130. É isso que creio que vêm interromper muitas das certezas que tínhamos antes.”
Recuperar a credibilidade
A prazo, os analistas estão quase todos de acordo em que o grande desafio do novo Presidente, aquele pelo qual a sua administração será provavelmente avaliada, é o de restituir à América a credibilidade perdida. Stefan Halper considera que a sua grande tarefa é “demonstrar nos próximos quatro anos que a América faz parte do futuro, que os valores americanos e que o sonho americano ainda são consistentes”. Há, diz o professor de Cambridge, as crises que estão por resolver, o Iraque e o Irão e o Médio Oriente e o Afeganistão e que, muitas delas, poderão ser apenas contidas. Mas há um desafio a mais longo prazo, “porventura o maior desafio para os EUA e para a Europa nos próximos 50 anos: voltar a mostrar ao mundo que o nosso modelo democrático de desenvolvimento é o melhor”. “Será esta provavelmente a grande batalha de ideias que pode moldar o futuro e Barack Obama terá de ilustrar de novo a importância das liberdades de que desfrutamos, porque são esses os valores que podem ser desafiados pelos modelos de desenvolvimento que surgem a leste.” Terá de fazê-lo “com uma mensagem de multilateralismo e de abertura”.
Henry Kissinger, no texto que escreveu para a edição especial da Economist “The World in 2009”, defende que é preciso “um novo diálogo entre a América e o resto do mundo”. Se este diálogo permitir que, dentro de algum tempo, o resto do mundo possa concluir que uma América menos poderosa se mantém ainda uma na América “indispensável”, então podemos estar perante o início de uma nova ordem e de uma nova era, considera o antigo secretário de Estado.
David Ignatius, o colunista do Washington Post, diz que o desafio maior de Obama é conseguir responder de forma positiva àquilo que Zbigniew Brzezinski, que é um dos seus mais famosos mentores, designa por “despertar político global” e transformar os EUA num aliado dos movimentos e das forças favoráveis à mudança. “As forças que manifestam em todo o mundo um desejo de respeito, de dignidade e de paz.”
Lesser acrescenta uma nota de prudência que resulta da extrema imponderabilidade da situação internacional e que pode alterar radicalmente as prioridades do Presidente. “A China pode estar em turbulência no próximo ano por causa da crise. Pode haver problemas dramáticos no Paquistão ou no Irão e só porque esta administração está mais aberta à negociação isso não quer dizer que esteja disposta a ntolerar, por exemplo, um Irão nuclear.”
A sua conclusão: “Haverá surpresas.” Que ninguém pode prever com segurança de onde virão. George W. Bush iniciou o seu primeiro mandato prometendo uma política externa modesta. O 11 de Setembro levou a uma verdadeira revolução da política externa americana. A vantagem é que esta será uma administração de gente “pragmática e com experiência, que não actuará em função da ideologia”, diz Lesser.
Emular Roosevelt
O homem que carrega aos ombros o fardo de “mudar o mundo” continua tranquilo e confiante. Acaba de ser eleito pela Time americana a figura do ano de 2008. Recebe a equipa da revista no seu modesto gabinete de trabalho em Chicago. Sabe com o que conta. “Não é claro que a economia já tenha atingido o fundo. E, mesmo que consigamos dar todos os passos necessários, daqui a dois anos pode ainda não ter recuperado totalmente.” Confessa algumas das outras coisas que lhe tiram o sono. O Afeganistão e as tensões entre o Paquistão e a Índia. A proliferação nuclear. As alterações climáticas: “Todos os indicadores vão no sentido de que estão a acontecer mais depressa do que aquilo que até os cientistas mais pessimistas antecipavam há dois ou três anos.”
Não conseguirá responder a tudo ao mesmo tempo. Haverá regiões do mundo que não lhe merecerão a atenção a que se sentiriam com direito. A outras, como à Europa, pedirá talvez mais do que estarão dispostas a conceder. Internamente, as expectativas mantêm-se muito elevadas. Uma sondagem publicada pelo Washington Post-ABC News há menos de uma semana indicava que uma enorme maioria dos americanos continua bastante optimista sobre aquilo que o Presidente poderá vir a fazer. Setenta e seis por cento aprovam a forma como está a liderar a transição e quase metade dos inquiridos acredita que ele pode dar rapidamente a volta à situação económica. A saúde, o combate às alterações climáticas ou a possibilidade de dar às famílias mais tempo para pagarem as suas hipotecas figuram entre as suas preocupações maiores. “À volta da mesa de Natal dos americanos só haverá um tema de conversa: a economia”, diz Stefan Halper. Mas também querem que ponha termo ao envolvimento americano no Iraque ou (em menor número) que encerre Guantánamo.
Quando a Time lhe pergunta o que espera ter conseguido dentro de dois anos, Obama apresenta uma longa lista preparada para ser conferida item a item. “Ajudámos a recuperar a economia do que é a maior crise desde a Grande Depressão? Criámos nova regulação financeira e novas regras que garantam que estas crises não voltam a acontecer? Criámos empregos que permitam às famílias ser auto-suficientes? Avançámos de forma significativa na redução dos custos da saúde e alargámos a cobertura? Lançámos aquilo que pode ser um projecto de uma década para virar a América para uma nova economia da energia? Começámos aquilo que pode ser um projecto ainda mais longo para revitalizar o sistema das escolas públicas? Fechámos Guantánamo de forma responsável, acabámos com a tortura e repusemos o equilíbrio entre as nossas necessidades de segurança e a nossa Constituição? Reconstruímos alianças à volta do mundo de forma efectiva? Retirámos as tropas do Iraque e fortalecemos a nossa política no Afeganistão, não apenas militarmente mas também política e economicamente? Conseguimos revigorar as instituições internacionais para lidar com ameaças transnacionais como o clima, que não podemos resolver sozinhos?”
Tarefa ciclópica? Sem dúvida. Mas afinal trata-se de Barack Obama, o homem que carrega nos ombros o destino de ter de ser o Roosevelt do século XXI. Há 75 anos, quando F.D.R. pronunciou o seu primeiro discurso inaugural em plena catástrofe económica, uma frase resumiu o seu estado de espírito: “Portanto, em primeiro lugar, deixem-me dizer-vos a minha profunda convicção de que a única coisa de que temos de ter medo é do próprio medo.” O novo Presidente terá, também ele, de escolher cuidadosamente as palavras. A sua tarefa não é mais pequena. Regressando à casa de partida, há um mundo nem desordem e há a extraordinária confiança de Barack Obama.
É tudo o que podemos saber.
Publicado na PÚBLICA a 28/11/2008
Fonte: Público