Ruy de Carvalho volta ao D. Maria II
Aos 82 anos, Ruy de Carvalho volta ao D. Maria II em 'O Camareiro', de Ronald Harwood. A peça estreia-se na quinta-feira.
Naná, uma cadelinha pequena e simpática, tem passado o último mês a farejar os bastidores do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa. Conhece o bar e os camarins e espera pacientemente que o seu dono, Ruy de Carvalho, termine os ensaios da peça O Camareiro, que se estreia na próxima quinta-feira naquele teatro. "Ela é a minha companhia, a minha esposa, até dorme ao pé de mim, não a posso abandonar sozinha em casa o dia inteiro", justifica o actor.
Naná está a descobrir agora o teatro onde Ruy de Carvalho se estreou profissionalmente aos 21 anos. Mas o actor já pensava que não iria voltar a este palco. Há oito anos, foi despedido da companhia. "Mandaram-me embora porque o Teatro Nacional achava que não podia ter velhos nem reformados. Punham os novos a fazer papéis de velhos." Ficou magoado. Esperou em vão um pedido de desculpas "de cima". Aguardou a sua vez. E hoje tem a sua cara na fachada do teatro, ao lado da de Eunice Muñoz - os dois veteranos são as estrelas desta temporada no Rossio.
Aos 82 anos, 63 dos quais dedicados à representação, Ruy de Carvalho é unanimemente considerado um dos maiores actores portugueses. Já ganhou prémios e medalhas, dá nome a ruas e pracetas e até recebeu recentemente um doutoramento honoris causa. Ele fica satisfeito com estas manifestações de carinho - "Tenho sido bastante compensado em vida, há outros a quem isso não acontece" - mas não deixa que a popularidade lhe suba à cabeça. "Sou um cidadão normal, vivo num bairro simples onde todos me conhecem, sou uma pessoa como as outras só que tenho jeito para representar."
O "jeito", é isso que o distingue de nós. "Em algumas profissões basta ser tecnicamente bom, aqui não. O jeito é o princípio de tudo, depois vem o resto, mas leva muitos anos. A experiência é muito importante. Não quer dizer que em novo não se consiga ser bom actor, tem é que se ter alguém que nos ajude a seguir em frente, a caminhar bem. Os jovens vêm com sonhos, trazem as ideias novas e trazem o caos que, no fundo, faz evoluir tudo, até os mais velhos vão evoluir com isso, contagiamo-nos mutuamente."
Aos jovens que chegam ao teatro com vontade de serem actores a sério, e não apenas "para a montra, que sempre os houve nesta profissão", Ruy de Carvalho dá-lhes o mesmo conselho que recebeu dos seus pais quando decidiu ser actor: que estudem, que se preparem, que sejam cultos. "Qualquer curso de letras é bom, ter um conhecimento geral, saber história, filosofia, poesia, tudo isso faz parte", explica. Apaixonado por poesia e música, Ruy de Carvalho tem um arquivo imenso e afirma-se em constante aprendizagem. "Debitar uma coisa é fácil, mas não se pode fazer Shakespeare, por exemplo, se não se souber nada sobre Shakespeare. Tenho de saber como é que foi aquele tempo, porque é que se vestiam assim, porque é que falavam assim, o que é que comiam e bebiam." Todo esse conhecimento, "assim como a observação do nosso semelhante, que é a grande escola da vida", forma o arquivo de cada actor, a que recorre, quase inconscientemente, quando tem de interpretar um papel.
Em O Camareiro vai interpretar um actor e director de uma companhia. Durante os ensaios, muitas vezes deu por si a rir-se com as coincidências entre a ficção e a realidade. "Eu estou bem, graças a Deus, mas ele está em declínio, aproxima-se da morte e já está um bocadinho choné, esquece-se das coisas, às vezes esquece-se das falas, que é algo já nos aconteceu a todos." Agora que Ruy de Carvalho já tem experiência de sobra, a memória é a sua grande inimiga. "São muitos anos, é muita idade", diz. Apesar disso, divide-se entre o teatro e a televisão, às vezes acumulando ensaios e gravações. "Nem sei como é que aguento." Talvez seja isso que o torne diferente. A perseverança. Os nervos que ainda sente antes de entrar em cena. O respeito pelo público. O facto de querer dar sempre o seu melhor. "Sou um actor de bengala. Daqueles que estão em palco até morrer."
Fonte: DN