Entrevista #18- com Uxu Kalhus


Uxu Kalhus




Uxu Kalhus são uma banda nacional de folk
ligada à terra, dança e tradições da nossa música.
Conheça melhor esta banda que nos enche de folia a
cada nota que faz soar.




Whisper - Contem-nos um pouco sobre a história dos Uxu Kalhus.
Paulo Pereira - Eu dava aulas de dança em Évora em 1998 e conheci a Celina; tinha acabado de deixar os Bailia, e formámos um duo que se chamava CPPP (Celina Piedade + Paulo Pereira). O Repertório era essencialmente música dita Europeia. Rapidamente o duo passou a trio (com o Winga) e mais tarde, em 2000, houve um convite para ir a Gennetines fazer um baile Português. Nesse momento juntou-se à banda o Vasco Casais, porque achávamos importante ter cordas no grupo. Portanto, na realidade, os fundadores d’Uxu Kalhus foram 4: Paulo Pereira, Celina da Piedade, Winga e Vasco Casais. Foi nesse ano que efectivamente nasceram Uxu Kalhus, baptizados pela Margarida Moura, que também foi a França para ensinar as danças. Mais tarde entrou o Eddy (2002) e depois o Miguel Casais (bateria) e Hugo Menezes (percussão). O Hugo entretanto saiu, e foi este sexteto que gravou em 2004-2006 a Revolta dos Badalos. A Joana Negrão por um breve período de tempo também fez parte da banda, e desde 2006 saíram o Vasco Casais, o Miguel Casais, o Winga e agora a Celina, sempre por incompatibilidade com outros projectos (Dazkarieh, DZRT, Blasted Mechanism e Rodrigo Leão). Em 2006 (final) entrou o Tó Zé (guitarras) e o Luís Salgado (bateria) e os mais recentes membros da banda são o André Lourenço (teclas) e Joana MArgaça (voz), que entraram em 2009.
To Zé - Eu sou um “cristão-novo”. Conheço o grupo há muito tempo, mas só fui “evangelizado” em 2006, com um convite surreal por meio telefónico e em manhã submersa, tão ao jeito dos membros da banda com filhos madrugadores… Conhecia o Eddy dos tempos das muitas e variadas bandas de garagem da fervilhante “cena eborense” dos anos 90, em que militámos ambos activamente. Conhecia a Celina das muitas músicas onde andava e conhecia o Paulo pela Pé de Xumbo (na altura, trabalhava na Div. de Cultura do Município de Évora e havia uma relação de proximidade com a Associação, que desenvolvia já uma actividade importante na cidade e no concelho). Conhecia também o Vasco, mais até pelos Dazkarieh e porque me apareceu numa bela tarde solarenga na extinta “Fábrica da Música” com uma gravação dos Daz.; sabia quem era o Nuno, ainda antes da metamorfose para Winga (tínhamo-nos cruzado algumas vezes, quase sempre em situações improváveis) e conhecia o Hugo (Mandinga) pelo seu trabalho em diversos projectos. Em 2005, se não estou em erro, a PédeXumbo organizou uma residência de Músicos na Herdade da Marmeleira (Évoramonte) e eu, vindo do funk-rock-experimental-o-qualquer-coisa, meti férias da função pública e tive oportunidade de trabalhar com um grupo de músicos “a sério” e filiados na folk e no movimento das danças, entre eles estavam os Uxu.… do outro lado da linha, diziam-me que a banda estava num momento de mudança e perguntavam-me se queria participar. Respondi que sim, sem saber bem ao que ia. Mais tarde, consciencializei o processo e perguntei-me como é que um pseudo-músico-dos-tradicionais-3-acordes-do-rock podia “sacar” tantos temas a “mil à hora” e em tão pouco tempo. Liguei de volta. Ninguém atendeu. Fui conhecer os temas à Nazaré, em agradável sábado de sol do Oeste e fui ensaiar à Reca (onde se juntou o companheiro Luís Salgado, Bateria). Primeiro e único ensaio antes da digressão da “Revolta dos Badalos Tour”.

W - Como é que caracterizam o vosso som?
PP - Partimos do baile como fonte inspiradora; mas não consideramos que temos que ter um conhecimento quase científico das coisas para poder mexer nelas; por isso compusemos danças Portuguesas como o Vira ou as Saias, ou danças “Europeias” como o círculo ou a mazurca; não temos qualquer problema neste processo: somos músicos que se servem das danças como material para moldar um repertório inovador e original. Não temos a pretensão de ter que ter um doutoramento em viras antes de podermos compor um. A música popular sempre foi do povo. O que nós fazemos é perpetuar essa tradição, e dar vida à música popular.
TZ - O repertório da tradição oral e/ou outro material vem ter connosco e depois fica … ou não. É preciso sentir na pele. Há uma selecção natural que acaba por acontecer sem que façamos “pressing” nesse sentido. Quando estamos juntos tocamos! Seja onde for: muitos temas aparecem nos testes de som ou à mesa de um café ou nas intermináveis viagens de carrinha (quando a dita se digna a funcionar). Por outro lado, fazemos música original para formas definidas (como o corridinho, as saias, etc …) e brincamos às coreografias, contribuindo assim para aumentar o repertório de música e dança de inspiração portuguesa. Somos gente e músicos do nosso tempo, com acessos e exclusões característicos dos lugares onde vivemos (e ainda das tradicionais condições económicas, sociais, culturais e outras acabadas em ais). O que propomos é um olhar actual para a nossa música e dança, entendendo o baile enquanto fenómeno social total e totalizante, por isso nos filiamos no NBP [Novo Baile Português].

W - Os elementos da banda provêem tanto de vários pontos do país como de vários estilos musicais. Como conseguem lidar com esses factores?

PP - Com total liberdade; ou seja, cada um expressa-se a 100% (ou quase na banda). É essa a nossa riqueza por isso não tem sentido mudar essa filosofia.
TZ - Uxu Kalhus vivem justamente dessa diversidade. A banda é a soma das partes que, muitas vezes, supera o todo. Orgulhamo-nos de ter uma secção barroca a tocar com a “dark force” do jazz-metal, com inputs de funk-rock a soar a arfro-swing de tradição europeia. Isto é música portuguesa… de fusão.

W - O que mudou com a saída de Celina da Piedade e a entrada de Joana Margaça?
PP - Perdemos a Celina, ganhámos em banda. Continuamos todos amigos, como também acontece com o Vasco Casais ou com o Winga; mas para chegarmos mais longe, amadurecermos como banda e termos disponibilidade para tocar sempre que nos solicitam, esta era a única solução. O importante é que a amizade continua e haverá muitas oportunidades para tocar com a Celina, dentro d’Uxu Kalhus (Uxu Big Lula, etc.) nas jams, em duos, trios e o que mais for. Para fora, tenho a certeza que o que fazemos ao vivo irá cativar as pessoas da mesma forma. E neste momento, pelo elevado número de solicitações de promotores de espectáculos, a solução encontrada parece-nos ser a mais acertada para podermos evoluir como grupo e podermos ser músicos profissionais.
TZ - Uma banda é um colectivo de pessoas, não depende, pelo menos em teoria, da inspiração e transpiração de um(a) só. Como colectivo, trabalhamos todos para o todo. A saída de um elemento, seja mais carismático ou não, é sempre um momento de mudança e pode ser encarado como um “handicap” ou como uma oportunidade de renovação (qualquer semelhança com a crise económica é pura coincidência). A Celina foi fundadora do grupo (com o Paulo), é uma grande “Música” (assim, no feminino), para além de uma amiga. Como tal, é um elemento incontornável na história da banda. Mas ninguém é insubstituível e, com a saída da Celina, Uxu Kalhus renovaram-se e ganharam um respeitável cravista/baixista e uma voz quente na linha da frente. Somos 7: André – teclas e vozes, Paulo – flautas e vozes, Tó-Zé – Guitarras e vozes, Eddy – Baixo e vozes, Luís – bateria e percussões, Joana – Voz principal e Samuel – Som e vozes surpresa. Mas ninguém sai verdadeiramente d’Uxu Kalhus, somos uma grande família e “uma vez badalo, para sempre badalo!” A prová-lo, está a ficha técnica do último CD, onde figuram actuais e antigos membros oficiais da banda, todos próximos, embora a militar activamente em diferentes projectos. Como todos os que passaram por aqui, estou certo que nos encontraremos com a Celina sempre que possível e quando isso acontecer far-se-á uma festa, a celebração do encontro dos badalos!

W - Falem-nos um pouco sobre o vosso último trabalho intitulado “Transumâncias Groove”.

PP - Os arranjos foram construídos em ensaios, ao vivo e em estúdio. Correspondem a uma forma muito particular que temos de trabalhar, onde cada um se expressa com total liberdade. O resultado está aí à vista e a sonoridade do CD corresponde a um colectivo muito forte. Neste CD tivemos também a preciosa ajuda de Marco Jung, que produziu e melhorou alguns temas, sem nunca interferir com a “linha editorial” do grupo; pelo contrário, potenciou as qualidades e eliminou defeitos. Grande Marco! O CD leva-nos numa viagem metafórica concretizada nos capítulos em que dividimos o alinhamento: Transumâncias extremas, com a Itália e Índia no mesmo tema, a saia da Carolina do extremo de Portugal, as mazurcas que mesclam países e o círculo juntando Trás-os-montes, o passado e o presente. Geografias marcadas com as Saias do Alentejo, Cabo Verde e a Chapelloise (com Alentejo, Trance, e América Latina), porque são ritmos e danças e culturas muito marcadas, que se distinguem pela sua originalidade muito forte. Trilhos da Lusofonia, com a reinvenção do que é Português em primeiro plano, como o vira, a valsa (moda algarvia), o corridinho e a carvalhesa; mesmo a Bónus Track encaixa neste capítulo, com o Rap em português a ser o mais moderno trilho da nossa Lusofonia.
TZ - Ao contrário de algumas bandas, quando fomos para estúdio tínhamos apenas uma ideia do que queríamos fazer. Havia já algum material original e versões de temas (como a Saia da Carolina) que foram surgindo nos ensaios, nos testes de som e em outros lugares igualmente estranhos onde nos encontramos. O estúdio é uma excelente oportunidade para experimentar e exercer a liberdade criativa. Foi isso que fizemos. Criámos as estruturas base e cada um fez praticamente aquilo que lhe ditava a sua consciência na altura. Salvo raras excepções, gravámos a bateria e o baixo (conforme gravação de ensaio em tarde solarenga na casa do Paulo, entre choro e riso de crianças e uma vista fabulosa sobre a Serra da Arada) e os temas foram ganhando forma a partir daí. Gravámos no Marduc Studio, Trabalhia – Caldas da Rainha, um espaço relativamente isolado, bem apetrechado, com cozinha, sem relógio de parede e um “homem dos botões” que acabou por ser mais um elemento da banda em gravação, o Marco Jung – excelente músico, técnico e membro oficial da família Uxu! Os arranjos também lhe pertencem, foi parte muito activa no processo. Outro factor importante tem a ver com os músicos convidados, que foram preenchendo espaços e contribuindo para o resultado final do disco. Sabíamos os ambientes sonoros que queríamos para cada um dos temas, conhecíamos as pessoas indicadas para o efeito e, que casualidade, a esmagadora maioria fazia parte do nosso grupo de amigos… Reunido o material de estúdio, havia necessidade de dar uma ordem ao disco. À música X deverá corresponder a faixa Y. Curiosamente, a ordem do disco foi praticamente consensual entre os membros da banda e dessa ordem saíram linhas de força que agrupámos por capítulos. O capítulo 1 [Transumâncias Extremas] reúne uma Tammurriata da Serra do Caldeirão, uma Saia da Carolina, um Círculo e uma suite de Mazurkas. Músicas e danças de Latitudes e longitudes extremas anunciam a partida e dão início a este baile improvável. O capítulo 2 [geografias marcadas] propõe uma passagem por geografias diversas, nem sempre horizontais, com danças de pares e de grupo, para ajudar no caminho e desfrutar das paisagens marcadas por rios, mares, ilhas, desertos e pastagens. Na mochila, umas saias do Manuel do Rio, uma suite de funanás e uma chapelloise ibérica arrumam-se com o farnel do viajante. No capítulo 3 [Trilhos da Lusofonia], o mais extenso, agrupam-se uma suite de valsas populares e eruditas em co-existência pacífica e com contornos de cumplicidade, um corridinho da bela serra do Arestal, um “energizante” Vira do açúcar, um momento de reflexão para descansar os pés quentes/dormentes e exercitar a mente em conversa sobre estas questões da viagem e ainda uma carvalhesa com gaita transmontana, desafinada por natureza, a dar por finda a transumância por latitudes e longitudes improváveis. No encore, momento ainda para uma fusão extrema, com o hip hop a juntar-se ao folk na leitura da urbanidade, reforçando a ideia de que este último, o Folk, “pode ser actual e contemporâneo – não necessariamente delicodoce!”

W - Quais são os grandes pontos de divergência entre o “A Revolta dos Badalos” e o “Transumâncias Groove”?

PP - Há duas grandes diferenças: 1ª diferença, na revolta fizemos arranjos de danças portuguesas tradicionais, neste CD compusemos danças Portuguesas; a 2ª diferença é que temos duas danças de Grupo Folk (círculo e Chappeloise), o que não existia no 1º CD. De resto, a nossa postura é a mesma, e no fundo o que fazemos é aprofundar o trabalho começado com a revolta. Claro que a receita terá sempre a mesma génese criativa: o baile, os ritmos de danças, a lógica do movimento dos corpos é a nossa matéria prima para a construção das músicas.
TZ - Uxu Kalhus são um organismo vivo, em constante mutação, e na procura de caminhos para a construção de uma identidade sonora dinâmica e “desempoeirada”. A banda vive de quem a habita e de quem a visita, sem pretensão de criar receitas, por mais abertas que sejam, como bases para uma qualquer sopa de legumes. Não creio que o Transumâncias repita a mesma “fórmula” do primeiro disco, na medida em que há novos intervenientes no processo, novas histórias de permeio e mesmo métodos de trabalho diferentes. No entanto, há uma filosofia de grupo e desse ponto de vista, o resultado final acaba por espelhar aquilo que pensamos e a maneira como lemos o que nos rodeia. Se há um fio condutor entre o primeiro e o segundo disco, que aponte no sentido da construção de uma sonoridade própria e característica do grupo, isso deixa-nos naturalmente felizes e satisfeitos com o nosso trabalho.

W - Como é que caracterizam um concerto vosso? Falem-nos um pouco sobre essa experiência.
TZ - Um concerto de Uxu Kalhus é sempre uma experiência única para a banda e para o público. Não fazemos alinhamentos em toalhas de restaurante nem, muito menos, os trazemos de casa já imprimidos em A4 a bold. Tocamos o que nos apetece, no momento em que nos apetece. A esta filosofia, juntamos improvisação qb e uma boa dose de energia. Os espaços onde tocamos acabam por ter um papel, por vezes, relevante na direcção de um espectáculo nosso. Um auditório é diferente de uma sala sem lugares sentados ou de um recinto de festival ao ar livre, por exemplo. Os espectáculos acabam por ser diferentes. Num auditório, andamos mais próximos de um concerto e, nos outros espaços, de um espectáculo onde a dança tende a ganhar maior importância, será qualquer coisa como um concerto/baile. Gostamos de ambos os formatos, têm sabores diferentes, mas sempre boa energia. É claro que nada disto é estático, em várias ocasiões, já assistimos ao transformar de um concerto para gente sentada num grande baile entre cadeiras (riso). Outro aspecto importante acontece quando temos oportunidade de fazer um workshop de dança antes do concerto, ou concerto/baile. Faz parte da filosofia do grupo fazer estes workshops, dirigidos a todas as faixas etárias, níveis técnicos e dimensões de barriga. Para além de deixarmos a semente do baile, criamos uma relação “a priori” com o público, que nos permite um diálogo mais fluido durante os espectáculos.

W - Onde encontraram o vosso melhor público?
TZ - Em qualquer lugar que reúna uma moldura humana disponível para ouvir e sentir a música que produzimos e que permita estabelecer uma atmosfera de diálogo. Isto pode acontecer, literalmente, em qualquer lugar. Temos tido experiências muito interessantes em latitudes tão distintas e distantes como Macau, Alemanha ou Trás-os-Montes.

W - Têm projectos para o futuro que queiram partilhar connosco?
TZ - Em 2010, a banda comemora o seu 10º aniversário. Uxu Kalhus nasceram com o milénio. Pensamos que está na altura de fazer um registo ao vivo, em jeito de balanço, mas também com os olhos postos no futuro. Será um disco 50/50, com uma síntese de temas antigos e novos temas, que estamos a trabalhar e a descobrir agora. Queremos continuar na senda da Europa e levar estas Transumâncias [Transumâncias Groove, Uxu Kalhus - 2009] ainda a outras paragens. Há muita estrada para andar e o caminho faz-se caminhando. De resto, queremos continuar a descobrir e reinventar a música portuguesa e divertir-nos imenso com isso.

W - Alguma mensagem que queiram aproveitar para deixar aos nossos leitores, aos vossos seguidores, ou às promotoras nacionais, etc?
TZ - Aos leitores da revista, que continuem a ler e que tenham sempre uma atitude crítica sobre tudo o que lêem. Que escutem música com a mesma atitude. Aos seguidores, se existem, que continuem a aparecer para fazer a festa e que tragam amigos (as) também. Às promotoras nacionais, que tenham presente que a única maneira de sobreviver no mundo global é com identidade. Apostem na música portuguesa e ajudem-nos a todos a redescobri-la e reinventá-la.

POSTED BY Joana Vieira
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